A mítica dona Mitiko

Foto crédito: Fernanda Paradizo – Instagram @fparadizo

Muita gente tem perguntado sobre a velhinha japonesa que me entusiasmou a começar a correr, cuja história publiquei neste mesmo espaço há alguns meses. Para quem não leu, ou não se lembra, resumo o episódio de minha conversão às corridas. O ano mal havia começado e lá estava eu, em pleno parque do Ibirapuera, dando umas corridinhas de sedentário que jurou tomar vergonha na cara depois de acompanhar a São Silvestre pela TV. De repente, passou ventando por mim um grupo de corredores. Entre eles estava a tal vovó oriental, que passou a minha frente com extrema facilidade. Envergonhado, decidi ultrapassar a septuagenária a qualquer custo, mesmo que tivesse que explodir os pulmões e estourar os ligamentos.

Tudo em vão. Quanto mais eu tentava me aproximar, mais a velhinha sumia na poeira do horizonte.

Minutos mais tarde, esbaforido, às portas da parada cardíaca, eu vi a velhinha outra vez, já fazendo seus alongamentos após ter concluído um tiro de 3.000 metros. Eu, que tinha corrido no máximo uns 800 metros, estava em petição de miséria. Já a vovó, parecia que havia saído de casa naquela hora, para ir à feira. Respirava normalmente, conversava com os colegas e comentava o tempo obtido. Arfante e indignado, agarrei pelo braço o primeiro que encontrei e perguntei: ‘Quem treina a velhinha?’. Fui informado que todos ali eram treinados pelo Wanderlei de Oliveira, diretor do departamento de corridas de rua da Federação Paulista de Atletismo, técnico especializado em corridas de longa distância e pioneiro na preparação de grupos para a Maratona de Nova York algo que faz desde 1982.

Depois de convencer o Wanderlei que, apesar de jornalista e ainda por cima carioca, eu teria disciplina para treinar para uma maratona, passei a correr na RUN FOR LIFE, mesma equipe da vovó. Logo descobri que ela se chama Mitiko Nakatani.

Dona Mitiko, que me derrotou fragorosamente naquela manhã de janeiro, é uma lenda viva das corridas de veteranos no Brasil. E é sobre ela que eu gostaria de falar um pouco mais hoje.

Dona Mitiko tem 71 anos e é a atual recordista brasileira de quase todas as provas de longa distância e da marcha atlética. Faz 10 km em pouco mais de 50 minutos, tempo que muita gente de vinte e poucos anos que malha em academia e corre em esteira nem sonha em conseguir. Ela treina cinco vezes por semana, numa carga total equivalente a mais de 200 km percorridos por mês. Estar correndo tanto e tão bem com mais de 70 anos já faria de Dona Mitiko um exemplo para o pessoal da chamada terceira idade. Mas a façanha da simpática vovó vai além. É que ela só começou a caminhar, como exercício, depois dos 60 anos, e assim mesmo por recomendação médica. Ela estava, como se costuma dizer, ‘entrevada’ após uma longa enfermidade. Caminhadas ao redor do quarteirão seriam importantes para que Mitiko-san fosse recuperando a vitalidade aos poucos. E assim ela fez.

Com paciência e determinação orientais, Dona Mitiko começou a dar uma volta diária no quarteirão. Certo dia se animou e deu duas voltas. Depois três, quatro, vinte… Até que o médico lhe perguntou se não seria melhor começar a dar umas corridinhas. Foi quando ela decidiu treinar com o Wanderlei de Oliveira e acabou se convertendo numa grande campeã.

Aqueles que vivem dizendo que já é tarde para modificar certos hábitos precisam urgentemente bater um papo com a simpática vovó.

Outra coisa que descobri sobre a mítica Dona Mitiko é que não fui o único a tentar ultrapassá-la. Vários outros corredores calouros passaram pela mesma sensação de incredulidade e impotência, quando confrontados com as passadas curtinhas e sincopadas da vovó corredora.

Lembram daqueles dois corvos que usavam chapéu e gravata borboleta e viviam aprontando, chamados Faísca & Fumaça? Lembram que eles davam uns passinhos rápidos no ar quando caminhavam? Pois é. Dona Mitiko correndo lembra muito as passadinhas de Faísca & Fumaça. Naquele trote curto e absolutamente constante, ela vive deixando os marmanjos para trás. Esperto, o Wanderlei aproveita para estimular os alunos. ‘Ô jornalista, que vergonha! Vai deixar a Dona Mitiko te passar de novo?’ costuma gritar ele, durante os treinamentos. Ou então diz assim: ‘Faltou ao treino hoje, não é? Por isso é que você perde da Dona Mitiko. Ela tava lá, treinando forte, às seis da manhã’.

Mas a frase que provoca calafrios nos corredores iniciantes é bem mais simples e direta: ‘Lá vem a Dona Mitiko!’. É ouvir isso para a gente começar a correr mais forte, imediatamente.

A esta altura o leitor deve estar se perguntando se eu consegui ou não passar a Dona Mitiko. Pois consegui, sim. Treinando 70 km por semana, em cinco sessões matinais, ultrapassei, com supremo esforço, a querida vovó atleta. Mesmo assim, isso ocorreu numa prova mais curta, de 5 km. Duvido muito que consiga repetir o feito numa prova longa, de 10 km por exemplo, onde a regularidade da velhinha contará mais do que as minhas largas passadas. Há quem jure que ela estava se recuperando de uma contusão, o que teria facilitado a minha tarefa. Não importa. Na gloriosa manhã em que eu um galalau de 38 anos, 1,85m e 90 kg ultrapassei a velhinha setentona e com menos de um metro e meio de altura, senti o júbilo que só os grandes campeões experimentam.

São essas pequenas façanhas cotidianas, aparentemente sem importância, que fazem da corrida um esporte tão fascinante.

Porque correr é, acima de tudo, vencer os seus próprios e terríveis fantasmas. Mesmo que esses fantasmas terríveis sejam representados por uma simpática vovozinha japonesa, de 71 anos de idade…

E lá vem a Dona Mitiko!

P.S.: Sabem como e onde a Dona Mitiko vai comemorar as bodas de ouro? Correndo os 42 km da Maratona de Paris. Chique, não?

Marcos Caetano é carioca, tem 38 anos, é comentarista da ESPN Brasil e colunista de esportes dos jornais O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil e Pasquim.

Este texto foi escrito por: Marcos Caetano em janeiro de 2003 e publicado na íntegra como uma homenagem a Mitiko Nakatani que faleceu no dia 13 de julho de 2020 de morte natural aos 90 anos.

As bodas de ouro, como o Marcos Caetano citou no texto acima, ela correu a Maratona de Paris em 4 horas e 13 minutos aos 72 anos de idade.

Campeã mundial master da Maratona na cidade de San Sebastian, na Espanha, em 2005, com 4 horas 59 minutos e 44 segundos com 73 anos de idade.

Wanderlei Oliveira

Técnico fundador do Clube Corpore, em 1982, e do Pão de Açúcar Club, em 1992. Desde 2000 é comentarista e blogueiro.

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Wanderlei Oliveira

 

Iniciou no atletismo em 1965. Já percorreu o equivalente à três voltas ao redor do planeta Terra. Técnico fundador do Clube Corpore, em 1982, e do Pão de Açúcar Club, em 1992. Desde 2000 é comentarista e blogueiro.

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