Correr uma maratona, 42.195 metros, já é um desafio para qualquer pessoa. Em condições não favoráveis se transforma em superação.
Confira o relato emocionante e os caminhos que levaram Márcia Possari até a Maratona de Boston.
“Era manhã de setembro de 2016. 44º edição da Maratona Berlin. 17º graus. Minha segunda maratona na vida e a primeira Maratona Internacional: uma MAJOR.
Em 25 de setembro de 2016, ali em Berlin, eu conquistava meu índice para a tão sonhada das maratonas: Maratona de Boston.
Corri os 42.195 metros da cidade alemã, passando pelo Portão de Bradenbrugo e cruzando o pórtico para 3 hora e 27 minutos. Olhei para o relógio e chorava! É possível que eu tinha conseguido isso? Está acontecendo? O voluntário que entregou a medalha naquele dia dizia: Márcia, Its Real!!!´
Estava dentro do índice que a categoria do feminino exigia de 3h40m. Chorei muito de alegria e curti muito o mochilão que fiz pela Europa nos próximos dias pós maratona.
Após quase 30 dias estava de volta para realidade, que eu mal sabia que seria a parte mais tensa para o #RoadToBoston. O Brasil passava por uma crise financeira e as vagas de emprego estavam em escassez e eu me via fora do mercado de trabalho. Ter índice é uma coisa, mas como chegar até Boston, pagar inscrições e TODAS as despesas que envolvem uma maratona?
Já era março de 2017, quando em uma entrevista me perguntaram: qual seu sonho? Estar em Boston em abril de 2018 para fazer “a minha Maratona!” (Acreditem, eu disse isso!) Nessa hora o gestor que me contratava se interessou pela história, a entrevista desenrolou pela conversa de limites da mente, o que a corrida melhorava minha vida profissional, etc. Fui contratada. O sonho começou a tomar formas!
Comecei o ciclo de treinamento para Boston no final de novembro de 2017. Período puxado de base e logo final de janeiro, começou aumento de volume para a distância. Para quem é do ramo de finanças vai entender o que vou dizer aqui, essa época de janeiro a abril é a época que mais nos exige no trabalho. Fechamento do ano, demonstrações financeiras, auditoria…demandas e demandas. Para não furar sequer um treino, minha estratégia era simples: acordava diariamente 4:30 da manhã, organizava minha comida do dia todo (inclusive jantar), e pontualmente as 6:00 da manhã iniciava meu treinamento de corrida e em alguns dias da semana corrida mais musculação. Essa sequência não podia falhar, uma vez que não teria horário para sair do trabalho, podendo perder um dia de treinamento.
Há aproximadamente 5 meses da maratona, consegui negociar férias. Logo pensei: que legal, vou aproveitar melhor a cidade do esporte, não será apenas um bate-volta, mas a verdade é que os hotéis já estavam esgotados, as opções que sobravam eram absurdamente fora do meu orçamento, então bateu um desanimo, o que fazer?
Num treinamento na praia com o Wanderlei ele me deu a ideia, por que você não aproveita e estuda, faz tipo um intercambio? Assim aproveita hospedagem, alimentação, estudos e maratona?
Não deu outra, na segunda feira conversei na empresa, meus gestores aprovaram a ideia e no mesmo dia eu fechava um pacote de intercâmbio. O sonho estava acontecendo!
Para quem já estudou um pouco o percurso de Boston sabe que não é uma maratona simples e que pode ser bem desafiador o sobe e desce que existe lá.
Com isso na mente, preparei as provas alvos para o período de treinamento de Boston: 5 km, 10 km e meia maratona e envie para o Wanderlei aprovar. Todas tinham que ser desafiadoras, com percurso que tivessem subidas. E deu certo! Evolui muito nessas provas e cumpri o que precisava nelas. Até pódio (1º lugar geral feminino) eu conquistei na prova de 10 km, isso só fortalecia minha confiança para o dia do sonho.
Os treinamentos não foram diferentes: rodagens com percursos de sobre e desce e treinamentos de qualidade mais “agressivos” dentro do meu VO2.
No dia 7 de abril eu desembarca em Boston
No metrô eu já via propaganda com alusão a maratona. Treinei todos os dias em Boston. Ia pela manhã para me acostumar com o friozinho que fazia, beirando no máximo 2 graus negativos. Vi a cidade tomando forma, se estruturando cada dia para a MARATONA DAS MARATONAS.
No primeiro dia útil, já fui na loja oficial da maratona adquirir meus badulaques do Unicórnio, conhecer como seria a medalha e ver a maquete 3 D do percurso. Ali já mentalizava o que precisava fazer quanto a pace (ritmo da prova), hidratação e suplementação. Será incrível!
Na sexta feira Boston mudou completamente de cara, a FinishLine havia sido instalada e já recebia atletas de todo o mundo, estava um fervo a Boyslon Street. Observei tudo aquilo e sorri com alegria, tirei algumas fotos para galera que pedia e seguia para feira da Maratona.
Que lugar incrível é a feira! Me senti uma criança na primeira vez no playcenter (os antigos entenderão). O esquema de segurança era grande ali, logo que você entrava os voluntários com sorrisos largos te recebiam e encaminhavam para retirada do número de peito. Como viajei antes, meu “passaporte” para o número de peito não havia chegado em casa, mas foi simples de resolver, apresentei meu documento de passaporte e logo me direcionaram para pegar o numero de peito.
Os voluntários lhe recebem com muita alegria, tiram selfie com a galera, já lhe parabeniza por você estar ali retirando seu número. O clima ali é maravilhoso, todos estão realmente orgulhosos de estarem ali, de pegar seu número, de tirar uma foto com ele! É a materialização de muitos esforços e abdicação de alguns pontos da vida!
Fotos tiradas, vamos seguir para os Stands..haha…minha preocupação é comprar um GARMIN. Na quinta feira antes de viajar, meu garmin simplesmente parou. Nada fazia voltar a funcionar. Era improvável fazer uma maratona sem um relógio. Então cegamente fui até o stand da marca, adquiri meu relógio e voltei para casa para testar no mesmo dia. Deu tudo certo.
À noite, quando voltei para a casa que estava hospedada, minha homestay estava com visitas para conversar comigo. A família estava orgulhosa que estavam hospedando uma maratonista e tinha uma vizinha (um senhora dos seus 70 anos) com várias histórias a respeito das Maratonas de Boston e Nova York que ela havia feito no passado. Foi uma noite gostosa!
Voltei para “minha concentração” pernas para o ar, mentalização do percurso e minhas parciais. Só sai de casa de novo no domingo para a missa pré maratona* (*Após o atentado de 2013, essa missa acontece um dia antes da maratona, para abençoar a corrida e todos os atletas e pessoas que estarão envolvidos nesse grande evento), que digo, VÁ! Independente da religião é uma cerimonia linda que foca somente no assunto maratona. É ver a igreja repleta de atletas com jaquetas e medalhas de anos anteriores. É sentir o frio na barriga da responsabilidade de segunda.
No retorno para casa peguei uma ventania atípica e chuvinha fraca com flocos de neve, mas que logo passou. A previsão do tempo já anunciava o que esperava no dia 16: chuva fina e temperatura máxima de 6 graus. OK, já sabia ali que Deus estava dizendo que ia ser um pouco mais difícil a busca do unicórnio, mas minha cabeça estava preparada!
Minha quarta maratona. 16 de abril de 2018. 05:30 da manhã, tomava café com a família (eles acordaram para me desejar boa prova! #AmorDefine) e saía de casa. O “pai” da casa me avisou: menina, você não vai ter facilidade hoje, o tempo promete ficar feio, muito feio mesmo – ele frisou e ainda complementou: seja forte!
Ah, vale te lembrar que esse ano vai ser das americanas..rsrs..pesquisei e temos dois grandes nomes para o pódio, você vai ver! Sorri e fui para Back Bay pegar o ônibus que nos levaria para a largada que se dá em outra cidade: em Hopkinton.
Em Back Bay caia um chuvisco de leve, nem precisava de guarda chuva. Vários corredores seguiam com o saco de alimentos para o ônibus e um tênis extra para trocar na largada.
No caminho para Hopkinton a chuva foi piorando. Mandei mensagem para o Wanderlei e disse: hoje chove como chovia em Brasília na meia maratona de novembro de 2016. Isso aqui vai ter boas histórias..rsrs.
Mas Deus não estava interessado que eu me divertisse, e após o envio dessa mensagem rajadas de vento tão fortes iniciava. O olhar surpreso e assustado passou a tomar conta de todos os atletas ali, quanto mais próximo de Hopkinton, o tempo só piorava. Posso afirmar, a velocidade do vento era maior que a do ônibus que nos conduzia para nossa largada.
Chegado na vila dos atletas o caos estava era visto, era um piso cheio de lama, muitos chegaram afundar, não havia lugar para ficar senão a tenda que balançava muito com o vento e muita chuva na cabeça. Capas de chuva, sacolas voavam!
Fui para fila dos WC (banheiros), ali meus pés já congelaram. Fiquei olhando ao meu redor, e visualizei uns gringos indo para um puxadinho no prédio ali perto. Haha..segui eles e pedi para ficar ali, estendemos um jornal no chão e todos sentaram juntos afim de aquecer. Eram de Nova York e alguns estavam indo para 5º edição da prova e me garantiam: garota nunca vimos esse tempo!
10 horas anunciaram a chamada da minha onda (números com fundo branco), fui para lá, ainda agasalhada e com capa de chuva. Ficamos ali nessa primeira chamada uns 5 minutos, o local era descoberto. Após seguimos para segunda chamada, uns 2 km dali, fui observando que tinha muita gente de regata, meninas de top e shorts já tremendo de frio. Permaneci com todo o agasalho até o ultimo minuto.
10:25 era dada a largada, junto dela deixei calça e blusa de moletom e segui de bermuda, três blusas térmicas, luva e tapa orelha.
Mesmo sem sentir meus pés, tudo ia lindamente encaixado, mas mesmo com pace em torno de 4:48 não foi suficiente para manter o calor do meu corpo, eu só estava congelando, congelando, até que no quilometro 14 eu precisei pegar um gel de carbo no meu bolso e os dedos não dobravam, com sacrifício tirei do bolso, mas não conseguia abrir, nem no dente! Era frio. No km 15 pedi para voluntária abrir o sache e colocar na minha boca, que fase! Ela queria a todo custo me levar para um posto médico, alegando que eu estava roxa de frio. Agradeci, disse que estava bem e segui. A partir daquele km me conscientizei que precisava mudar a estratégia para concluir a prova com saúde. Ajustei o pace. Nos pontos de suplementação seguintes a ajuda dos voluntários seguiu, minha mão só ficava mais e mais congelada.
A cada km a ventania e chuvas piorava, a cada posto medico que eu passava era mais e mais pessoas parando. A chuva dava trégua de um minuto, eu via todos a minha frente tirando blusa, jogando fora capa de chuva. Era terminarem de fazer isso, vinha uma chuva e ventania pior do que havia passado…. eu via aquela cena e só conseguia sorrir e pensar: É Deus, você está dificultando para todo mundo pegar esse unicórnio ein?!
Pace aumentando, dores do frio aumentando. Foquei na torcida! São 42 km de gente gritando! Incentivando! Crianças, adolescentes, idosos, não tem idade ou tempo ruim que fizesse ter ao menos 500 metros sem uma torcida, não havia! Quando passei pelo 21 km já tinha certeza que me restava apenas TERMINAR. O planejamento tinha furado feio. A cabeça se reorganizou para realidade: vamos pra cima garota! A jornada te deixou forte, não vamos fazer corpo mole, e seguia a corrida.
No km 36 avistei uma amiga brasileira que tinha prometido que estaria lá para torcer. Ah aquele sorriso conhecido gritando muito meu nome, deu novas energias.
No km 37 ouvia bem longe alguém gritando: chocolate quente! Chocolate quente! Não pensei duas vezes se isso implicaria em algo, parei e tomei o chocolate quente, voltei para a prova ainda mais feliz e com certeza que chegaria ao final.
Passei a Heart Break e não me dei conta. O percurso não me fazia sofrer em nada, mas o frio?? O frio e a chuva não deixava eu enxergar nem o local que eu estava.
No km 40 uma garota emparelhou comigo e ela seguia erguendo os braços e pedindo para a torcida das ruas gritar, incentivar a gente. Gostei daquilo e animei para segui-la.
Última milha! Última Milha!
A multidão gritava! Já escorria lagrimas do meu rosto, meu dialogo com Deus já mudava e eu passava a pensar: Obrigada Deus por me fazer tão forte e fazer eu estar em Boston. Eu chorava e sorria e gritava: To em Boston! To em Boston!
Vire à esquerda e estará na Boyslon Street, vulgo FinishLine. Mentalizei isso a semana inteira antes da prova, quando me dei conta que estava na Boyslon ergui meus braços e fui nesses últimos metros com a cara estampa em sorriso. Vamos Pernas! Estamos chegando! Conseguimos!
3 horas 49 minutos e 21 segundos
Passava o pórtico! Chorava, sorria, estava ali parada congelando! A voluntaria carinhosamente veio me buscar, me deu a capa para aquecer. Não conseguia colocar, estava tudo travado. Ela abriu, colocou a toca, fechou o velcro. Me entregou a água. Não conseguia abrir a água. Ela abriu a água. Me deu e ainda deu um abraço confortante!
Peguei minha sacola no guarda volumes, me sentei num canto ali perto, não conseguia andar, o frio tinha invadido minha alma. Olhava a fila para tentar se trocar e estava enorme. Não conseguia levantar e chorava muito de alegria de ter conquistado aquilo. Algumas corredoras passaram por mim e perguntaram se estava tudo bem, disse que eu precisava me trocar e não conseguia. Elas ajudaram eu me levantar, fomos para entrada de uma loja que estava fechada, fizemos cabaninha e nos trocamos. Não sei nem a nacionalidade delas, mas a parceria vai ficar guardada para sempre no meu coração.
Quase aquecida novamente, segui para o metrô. Comprei um chocolate quente e um donuts. Pela primeira vez na vida eu comemorava uma maratona sem tomar uma cerveja.
Todos na casa estavam ansiosos para o meu retorno. Meu bib não apitou no km, e coração de todos que me acompanhavam aqui no Brasil e por lá acelerou um pouco, acharam que eu pudesse ter desistido.
Não senhores, essa não era uma opção para BOSTON.
Voltei forte e com a certeza que essa maratona só separou nos grandes dos GIGANTES,’
Márcia Possari, 35 anos, contadora. A primeira maratona foi em Foz do Iguaçu em 2015 (4 horas e 6 minutos) e a segunda em Berlin, 3 horas e 27 minutos, recorde pessoal.
Números da Maratona de Boston: 29.978 inscritos, 26.948 largaram e 25.746 terminaram (1.202 desistiram). 1.298 pessoas foram atendidas no percurso. 992 na linha de chegada. 80 pessoas foram hospitalizadas. 3 atletas de elite foram hospitalizados.
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