Intercâmbio no Rio de Janeiro

Professor César Couto + Marlon + Flora + Caio

Intercâmbio Carioca 

Junho, 2024

O Festival da Maratona do Rio foi palco de muitas conquistas e objetivos pessoais. Houve quem completou a distância pela primeira vez, aqueles que oficialmente abraçaram a identidade de corredor, os RPs alcançados, ou ainda o aprendizado de lidar com a frustração de uma expectativa não atingida. Para mim, a prova teve um papel diferente destes listados: correr foi o meio de celebração da minha relação com a cidade, em todos os aspectos que ela apresenta – seus cantinhos secretos, suas paisagens, suas pessoas, as memórias forjadas e os sentimentos evocados. Significou o reencontro com a vida carioca do começo do ano e, em especial, com minha equipe de treinos por aqui. 

Janeiro, 2024: o momento da mudança

Todo corredor amador entende que uma rotina estável e organizada é de grande ajuda para a consistência nos treinos. Afinal, conciliar os muitos pratos de trabalho, vida pessoal e o flerte com uma vida de atleta não é tarefa fácil, e ter uma rotina, com momentos certos e locais definidos para fazer cada coisa, nos ajuda nesta empreitada. Por isso, momentos de mudança na rotina aparecem como um desafio adicional – e uma potencial ameaça às ambições de performance. 

Ir para um novo lugar escancara toda a estrutura invisível que uma rotina resguarda: o conhecimento e acesso aos locais de treino, com suas muitas particularidades e variações (pista para a velocidade, piso natural para a rodagem, paisagens legais alternativas quando quiser variar, subidas para a base, etc.); uma rede de serviços relacionados (fortalecimento, fisioterapia, massagem, loja de suplementos); e, principalmente, a rede de apoio estabelecida – técnico, colegas de treino e amizades da corrida que colorem o dia a dia de um processo de treinamentos. Além dos aspectos objetivos disso, é importante reforçar toda a carga mental que essas pequenas decisões envolvem.

Por isso, quando falei ao Wanderlei que me mudaria para o Rio por um tempo, uma das minhas grandes preocupações era como manteria uma rotina de treinos já desafiadora com os novos desafios de uma vida nômade. 

Em outra viagem para as terras cariocas tinha conhecido a pista mais bonita da minha vida (relato neste outro texto). Naquele dia, em um treino pelo amanhecer de tirar o fôlego em uma base do exército, lembro de refletir o quanto o esporte poderia ser utilizado para desenvolver as pessoas e como ferramenta de segurança nacional. O quanto uma criança poderia aprender sobre a vida e se desenvolver cognitivamente, emocionalmente, socialmente e profissionalmente por meio do atletismo. E que um programa que incentivasse isso em escala, pensando em contextos de alta vulnerabilidade, seria um potencial de aceleração para o que em geral jogamos exclusivamente para a caixinha da educação.

Pois por lindas coincidências do destino, fiquei sabendo que a pessoa que me possibilitou a entrada neste centro de treinamento tinha um projeto que trabalhava justamente isso. O Instituto Correr Pela Vida oferece treinamentos de corrida para crianças e adolescentes da rede pública pensando no esporte como transmissão dos valores de democracia e cidadania e como plataforma de desenvolvimento e conexão com oportunidades. As crianças do projeto têm aulas de inglês na Cultura Inglesa, por exemplo, ou bolsas em escolas particulares do Rio. Morando lá, não poderia deixar de conhecer a iniciativa e o responsável por isso.

Fevereiro, 2024: O Instituto Correr Pela Vida

Foi assim que, por intermédio do Wanderlei e de um outro amigo em comum, me vi em um sábado às 6 horas da manhã pegando um moto táxi rumo à Praia da Urca, na frente da antiga TV Tupi, para um treino diferente. Conheci o Professor César Couto, idealizador da iniciativa e treinador responsável, sua mulher, os demais treinadores, o Marlon, o Caio e o Arthur, atletas da minha idade, e as crianças e suas famílias.  Estava sem saber muito bem meu papel e a resposta veio do jeito mais natural possível: correr.  E de um jeito que nunca tinha experimentado: logo me vi em um treinamento de tiros na areia fofa e no mar. Como diria Marlon, dignos de “fazer a carcaça sangrar!”. Nas rodagens pela praia e ruas da Urca, trocamos ideias, opiniões e experiências, e de um jeito muito sútil senti que estava um pouquinho mais em casa. Tinha encontrado valiosas companhias para quem, até então, estava treinando de forma solitária e sentia falta do que a corrida tem de mais valioso para entregar. 

Nas semanas seguintes, deixei um pouco de lado a planilha solitária e adaptei os treinos para estar com eles. Tive companhia para correr pela praia de Botafogo, a ciclovia do Aterro, a areia de Copacabana, os morros da Urca e o contorno da Lagoa. Conheci o universo da nova cidade ao mesmo tempo que conhecia o universo destas novas pessoas, o movimento nos unindo. Quem diria que algo tão simples e natural seria o que me proporcionaria as memórias mais marcantes dos tempos no Rio. Do treino sério à brincadeira de criança, das histórias de outras décadas às sementes de futuro sendo plantadas, das métricas de tempo para a troca com a natureza, o mar, o vento e a areia.  O Professor me ensinou tanto em trocas tão breves, talvez porque o que mais nos marca seja justamente o que nos permite sentir, e nada nos faz sentir tanto quanto o esporte. Me descobri forte, me encontrei correndo descalça, me defini carioca. 

O incrível neste processo foi descobrir que ao mesmo tempo que a rotina facilita, ela aprisiona num dado rol de possibilidades (escolhas) e se desprender dela pode abrir portas para tantas experiências encantadoras. Ainda, que a corrida tem o maravilhoso potencial de atuar como um integrador em uma nova cidade, como um jeito facilitado de conhecer pessoas, fazer amigos, explorar bairros e se sentir em casa em um novo local. Voltei para São Paulo entendendo que não existe uma única ‘vida na corrida’ e que eu sempre poderei descobrir tantas e tantas outras formas quando ela cair na monotonia. Que ela é instrumento de experiências, vivências e relações. 

Junho, 2024: o retorno

Depois de um mês com provas todo o final de semana, vir para o Rio não estava nos planos. Mas um convite inesperado me rendeu uma inscrição de última hora para a meia maratona, e uma passagem de ônibus e um apartamento cedido por um amigo viabilizaram a viagem de última hora. Me joguei nos 21 kms dançando com a paisagem do Rio: vi o sol nascer na orla, lembrei das rodagens pelos segmentos do trajeto, encontrei amigos ao longo da prova, revivi as memórias da minha primeira meia alguns anos antes, conversei comigo mesma nos momentos que a dor aumentou e me apoiei nos corredores que passava ou me passavam. Cruzei algumas vezes com o Caio e o Marlon na prova, encorajando-nos! Mas o maior fortúnio foi, por pura coincidência naquele megaevento com dezenas de milhares de pessoas, encontrar com os dois e o Professor César na linha de chegada. Não poderia ter sido mais simbólico – minha equipe carioca! Que as corridas sigam trazendo nossos reencontros!

Flora Finamor Pfeifer é corredora, escritora e cientista comportamental, atuando no tema de mudança de comportamento em saúde. É ASICS FrontRunner – @florafinamor 

Wanderlei Oliveira

Técnico fundador do Clube Corpore, em 1982, e do Pão de Açúcar Club, em 1992. Desde 2000 é comentarista e blogueiro.

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Wanderlei Oliveira

 

Iniciou no atletismo em 1965. Já percorreu o equivalente à três voltas ao redor do planeta Terra. Técnico fundador do Clube Corpore, em 1982, e do Pão de Açúcar Club, em 1992. Desde 2000 é comentarista e blogueiro.

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