Corra para a vida!

Abdias Ferreira Neto – RUN FOR LIFE

Há pouco mais de 18 anos, em 2004, eu conquistara meus dois melhores resultados na carreira amadorística de corredor fundista de rua. Em 5 de setembro, completo a Meia-Maratona Internacional do Rio de Janeiro com 1h34’10”, média de 4’29” por km, seguindo à risca a projeção planificada pelo técnico Wanderlei de Oliveira, que traçara 4’30” por km. Dois meses e meio depois, em 20 de novembro, nos 10 km do Troféu Zumbi dos Palmares, atravessei a linha de chegada após 40’50”, pela primeira e única vez na vida atingindo a tão perseguida casa dos 40 minutos, com parciais médias de 4’05”.


A meia-maratona foi sem dúvidas a prova mais difícil e desafiadora.

Às vésperas da primavera carioca, a largada se deu por volta de 9:30 horas, por conta da transmissão ao vivo do evento na principal emissora televisiva do país. Não me recordo da temperatura em graus, mas estava realmente quente. Após o tiro de largada, iniciei minha empreitada ao lado de três companheiros da equipe Run For Life, embora um deles, a corredora de elite Beth, estivesse lá “a passeio”, com o intuito de “puxar” os atletas João Ambrosano (experiente maratonista) e a competente Meire, que treinavam no dia a dia comigo, ou seja, possuíam ritmo e competência semelhantes aos meus.
Após os 10 primeiros quilômetros, cumpridos dentro do planejado, o calor carioca começa a mostrar seus efeitos devastadores. O grupo se distancia de mim, passo a passo, na altura da transição entre Ipanema e Copacabana. Ali, no km 11, meu motor ameaçou fundir e meu ritmo caiu significativamente, caracterizando a “pace” mais alta até então. Os companheiros de camiseta vermelha já não estavam mais no meu campo visual.


Um dia antes, sábado, bem cedo, eu embarcava num ônibus rumo ao Rio de Janeiro, após treinar metodicamente por meses, com o objetivo de fazer não apenas um bom papel, mas tudo o que estivesse ao meu alcance. Meia do Rio! Uma das provas mais emblemáticas do calendário nacional, reunindo, a exemplo da São Silvestre paulistana, corredores de todos os estados brasileiros bem como diversos países do mundo. Chegamos no meio da tarde, fomos direto retirar o kit de prova no local designado e, em seguida, rumamos para o hotel. Abri mão daquela “soltadinha” de poucos km em ritmo leve, própria de vésperas de prova, mas não indispensável. Noite de sono tranquila, seguida por um café da manhã literalmente “de hotel”, sobre o qual eu me debrucei sem reservas. Isto me levou à três visitas ao banheiro, quase em sequência, minutos antes do ônibus partir para o local do “start” da prova. Fruto tanto do exagero como da descarga de adrenalina própria para os momentos que antecedem um grande desafio.

Fato é que no momento da largada eu me encontrava 100%: preparado física e mentalmente, alimentado – com os estoques energéticos em alta – e hidratado.


Após um km 11 de incertezas, parcial acima do desejado, entro no “12” buscando um reequilíbrio acima de tudo psicológico, e obtenho êxito. Eis que surge o Túnel do Leme, 250 metros que ligam Copacabana ao bairro de Botafogo. Pouco mais de um minuto protegido do sol avassalador. Após vencê-lo, percorridas algumas centenas de metros, surge, à minha direita, a sede do clube Botafogo de Futebol e Regatas.
Totalmente refeito do “susto”, já na segunda e decisiva metade da prova, sinto-me bem e confiante. Retomo os tempos de planilha. Pé no acelerador. Então recordo de um encontro casual, meses antes. Um colega corredor pergunta-me se iria fazer a Meia do Rio. Respondo afirmativamente e, em seguida, a indagação comum aos corredores em geral: “Vai pra quanto?” Após ouvir minhas pretensões, o mesmo faz cara de espanto e rebate: “Não faz!”
Creio que não foi má vontade, desencorajamento ou coisa do tipo. Entendo que foi a percepção pessoal do “freguês”, levando em conta prova em questão e atleta, no caso eu, de quem ele tinha, digamos, mediano conhecimento no que confere a minha condição de corredor.
Ao passar em frente à sede de General Severiano, o botafoguense que faz esse relato assimilou, quase inconscientemente, que se “tem coisas que só acontecem ao Botafogo”, antigo e atual dito popular, para o bem e para o mal; existem também coisas que só acontecem a botafoguenses. No caso, ou neste causo, para o bem. Se eu já estava recomposto, foi a injeção de adrenalina que faltava!
Dali em diante, eu só não levantei voo porque corredores preferem o asfalto aos céus.

Corri leve, passadas seguras, diminuindo dois ou três segundos a cada quilômetro vencido. Mais do que o aspecto motivacional, o que me conduzia à frente era o resultado de sério treinamento.


Hoje em dia, ou já há bons anos, não compito mais. Um acometimento crônico em ambos os gastrocnêmios, músculos localizados nas panturrilhas, impede-me de correr como em outros tempos. Na verdade, corro em doses homeopáticas. Se não puder correr, eu ando. E quando não conseguir mais sequer andar, tenho certeza que me arrastarei.
Hoje eu corri muito bem, obrigado. Alternei corrida com caminhada, com “tiros” de até cinco minutos. Nos bons dias, como hoje, ainda corro leve, passadas seguras, e com um ótimo ritmo para um senhor de cinquenta e dois anos. Na verdade, modéstia à parte, meu ritmo é bom até para alguém na casa dos vinte ou trinta.
Quando saí de casa, sabia que seria uma boa rodagem e que as panturrilhas não iriam incomodar, desde que eu respeitasse a limitação imposta por elas. Intuição de corredor. Depois de 18 anos, peguei no armário a regata vermelha reservada apenas para dias de competição. Envergando-a eu conquistei meus dois melhores resultados em provas oficiais. Está intacta, nunca a tinha usado para treinar. Foi a primeira vez. Saí beirando o meio-dia, muito quente! Lembrou-me o calor – e a meia-maratona – do Rio de Janeiro.
Nos últimos quilômetros da prova, ultrapassei muita gente. A colega Meire foi uma delas. Depois eu viria a saber que cheguei apenas cerca de trinta segundos atrás do Ambrosano, o maratonista experimentado em provas de 42 km mundo afora.
Nos derradeiros metros, mais que o relógio do pórtico da chegada, mais que o público entusiasmado batendo palmas, mais que tudo, eu via o rosto daquele colega que dizia: “Não faz, não faz!”


Cruzei a linha mágica e real da chegada, após os 21 km e 95 metros, como já foi dito, com 1h34’10”. Sim, eu faço! Na minha regata vermelha – de competição – lia-se, em letras garrafais: “RUN FOR LIFE”.

Por Abdias Ferreira Neto, em 19/03/2023.

Abdias Ferreira Neto, 52 anos, paulista e botafoguense, é profissional de educação física e escritor nas horas vagas. Dedica-se ao esporte e à literatura desde a infância.

Wanderlei Oliveira

Técnico fundador do Clube Corpore, em 1982, e do Pão de Açúcar Club, em 1992. Desde 2000 é comentarista e blogueiro.

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Wanderlei Oliveira

 

Iniciou no atletismo em 1965. Já percorreu o equivalente à três voltas ao redor do planeta Terra. Técnico fundador do Clube Corpore, em 1982, e do Pão de Açúcar Club, em 1992. Desde 2000 é comentarista e blogueiro.

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