A jornalista Fernanda Paradizo, 52 anos, já correu 5 vezes a Maratona de Nova York e tem como melhor resultado 3h40 no ano de 2005 (1h50 na primeira metade e dobrando nos últimos 21 km). Na foto, Fernanda está ao lado da maior campeã de todos os tempos da Maratona de Nova York, a norueguesa Grete Waitz, venceu nove vezes na Big Apple, foi prata nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, quando aconteceu a estréia das mulheres na maratona olímpica. Waitz, que faleceu em 2011, tem ainda no currículo quatro recordes mundiais nos 42 km e ainda um ouro no Campeonato Mundial de Atletismo.
Fernanda, que estreou nos 42.195 metros em 1997 e fechou a Maratona de Nova York em 3h49, relatou para a revista Boa Forma de dezembro de 1997, da Editora Abril, sua experiência de oito meses de treino e sua participação na maratona mais famosa do mundo. Vale conferir!
O desafio
Sempre gostei de correr, mas nunca imaginei que um dia estaria entre os 31 mil atletas da Maratona de Nova York. E pensar que tudo começou com uma reportagem.
Domingo, 2 de novembro de 1997, pouco mais de 10 horas da manhã. O cenário era digno de um cartão-postal. Ventava forte, a neblina cobria a outra extremidade da Verrazano Bridge, ponte que liga Staten lsland ao bairro nova-iorquino do Brooklyn, e cerca de 31 mil pessoas tremiam de frio esperando por um tiro de canhão. Estava para ser dada a largada da 28ª edição da Maratona de Nova York. E eu não estava ali só para cumprir meu papel de repórter e descrever minha real impressão sobre os 42 km mais populares do mundo.
A história toda começou meio por acaso, quando fui fazer uma reportagem para a revista Boa Forma sobre o assunto. O técnico Wanderlei Oliveira, a época diretor-técnico do Pão de Açúcar Club, era um dos meus entrevistados. Na minha pauta, um programa de treinamento de seis meses para alguém que quisesse correr uma maratona. Concluí a matéria, que foi publicada no mês de junho na edição especial de Boa Forma Homem 1997, com o título ‘Encare Esta Maratona’, mas acabei sendo ‘vítima’ da minha própria história.
Preparação
Tudo aconteceu tão rápido que, quando percebi, já estava treinando com o Pão de Açúcar Club, sob a orientação do próprio Wanderlei. Apesar de a corrida já fazer parte da minha vida (três vezes por semana, 8 km por dia), tive que mudar alguns hábitos para conseguir cumprir a planilha de treinos sem causar qualquer estresse ao meu organismo. Mesmo porque o compromisso que eu tinha não era somente com o técnico, mas com os profissionais do CEMAFE (Centro de Medicina Esportiva) e também com a revista, que estava me proporcionado a oportunidade de fazer a matéria da minha vida.
Os seis meses de treinamento passaram tão rápido que, quando me dei conta, faltavam apenas 15 dias para o grande dia. Para determinar meu ritmo de corrida, fiz os últimos testes (ergoespirométrico e dosagem de lactato) com o Dr. Renato Lotufo, médico fisiologista do Corinthians, e ficou estabelecido 3h50 de corrida ou quem sabe um pouco menos.
Estava no auge da minha forma física, mas não conseguia controlar o nervosismo. Queria dormir as duas semanas que restavam e acordar só no dia da prova, já pronta para correr. Passei os últimos dias pensativa e mais fechada que o habitual. Tarde demais para desistir. Tinha chegado o momento de encarar o grande desafio.
O grande dia
Desembarquei em Nova York quatro dias antes da prova. O momento era delicado e eu não podia descuidar da alimentação. Hora de aumentar o carboidrato e de cortar a gordura do cardápio. Segui tudo à risca.
Quando chegou o grande dia, acordei cedo, preguei o número na camisa, arrumei minhas coisas e comi uma fruta, um iogurte e metade de um pão de glúten com geléia. Peguei minha sacola e, junto com alguns colegas de treinamento, segui caminho para pegar o ônibus que me levaria a Staten lsland, a 42.195 metros distante da ilha de Manhattan.
Chegando lá, era gente que não acabava mais. Depois de muito barro e empurra-empurra, eu, o Wanderlei e uma parte do grupo conseguimos chegar ao local de largada. Avançamos até onde deu e, no final, o nosso grupo, que era grande, tinha se resumido a umas dez ou doze pessoas, todos bem agasalhados e alguns enrolados em saco plástico para se prevenir do frio e de uma provável chuva anunciada pela previsão do tempo.
Quando foi dado o tiro de canhão, demorei quase dois minutos para cruzar a linha de largada (naquela época ainda não havia chip) e mais um para começar de fato a correr. No começo, não sabia se me desvencilhava da multidão, se controlava a passagem das milhas, se tirava a blusa e as luvas ou se me preocupava em tomar água e repor o carboidrato. Fiquei toda atrapalhada e por uns instantes perdi o controle da situação. Percebi que as pessoas do grupo que estavam comigo se distanciaram e eu não consegui apertar o passo para acompanhá-las. ‘Ou elas estão muito rápidas ou eu estou muito devagar’, pensei. Para meu desespero, demorei ainda algum tempo para confirmar que a segunda alternativa era a válida. Nesse momento, entendi por que me diziam que maratona era mais cabeça. Eu estava sozinha e ainda tinha muitas milhas a percorrer.
Antes de entrar no Brooklyn, passei por alguns conhecidos, que me desejaram boa sorte. Retribuí e segui em frente já um pouco mais calma. Consegui enxergar a quarta milha e aí sim tive a noção exata do ritmo em que estava correndo. Já tinha perdido quatro minutos do tempo que pretendia. E me fiz a pergunta: ‘Tiro a diferença?’ Meu lado emocional dizia que sim. Mas segui o racional. Optei por uma corrida estratégica, deixando para trás os minutos perdidos e passando a imprimir a partir dali meu ritmo habitual. Lembrei de uma frase do Wanderlei: `Procure sempre correr a segunda metade mais rápida do que a primeira’. Era exatamente isso que eu estava disposta fazer.
Metade da prova
As coisas foram entrando nos eixos e só faltava eu me acertar com a água e o energético. Eu perdia muito tempo nos postos de abastecimento e tinha que tomar uns quatro copos de água para dar conta da medida. E, para meu desespero, algo começou a pesar no estômago. Senti uma ânsia enorme e coloquei tudo para fora.
Passei a meia maratona a 1h58, média de 5’36 por km, cinco minutos abaixo do que esperava. Alguns cálculos e… a segunda metade ia ter que ser bem mais rápida do que a primeira. Ou então corria o risco de não concluir a prova em 3h50. E, pior, se algo desse errado, nem em 4 horas. Parar para ir ao banheiro, nem pensar.
De repente, deixei um pouco de lado os cálculos e comecei a me envolver com a festa, prestando atenção no que ocorria a minha volta. Foi quando percebi que pouco importava aquele tempo perdido. Eu estava lá na minha primeira maratona e o que todos esperavam era só que eu terminasse em boas condições físicas. Foi aí que consegui enxergar pela primeira vez o envolvimento do público com toda a festa. Era música gospel, dance music, rock. Uma banda tocando a cada esquina. E as barraquinhas na frente das casas para servir água, frutas, suco, doces e sanduíches.
Faltavam só mais 3 milhas e eu já estaria saindo do Queens, pela Queensboro Bridge, e finalmente entrando em Manhattan. Depois disso, uma passadinha rápida pelo Bronx e aí de novo Manhattan, faltando só mais 5 milhas para o final. Atravessei a Queensboro e daí para a longa reta da Primeira Avenida era como uma voltinha no quarteirão. Eu atingiria meus 30 km e um pouco mais para a frente os 32, até então meu limite em distância. Passaria também das três horas corrida. Embora tudo isso me martelasse o cérebro, já tinha a certeza de que completaria bem a prova.
Corri a Primeira Avenida com a segurança de quem era experiente no assunto. Aquele era o meu momento. Só ouvia as pessoas gritarem ‘go, go, go’ sem parar. Se na primeira metade todos passavam por mim, na segunda os papéis se inverteram. Nesse momento muita gente, não agüentando o esforço, parava. Algumas para tentar ganhar mais fôlego e outras para se livrar de alguma cãibra. Encontrei muitos amigos pelo caminho, uns correndo e outros só na torcida. Esqueci o tempo, o medo de quebrar e até a chuva que caía. Entrei no Central Park e arrisquei um novo cálculo. Mais 25 minutos e eu liqüidaria de vez o assunto. E aí percebi que, se tudo continuasse como estava, terminaria a prova no tempo previsto. Só que a chuva apertou e a enxurrada encharcava os tênis dos que passavam. A multidão, mesmo debaixo de tanta água, não arredava o pé e continuava a gritar, agora mais do que nunca.
Linha de chegada
Meus movimentos foram ficando cada vez mais pesados e travados. Nesse momento, minha preocupação era não deixar cair o ritmo. Comecei, não sei como, a apertar o passo e cruzei a tão esperada linha de chegada com 3h49. Parei de repente e, por um momento, achei que fosse perder os sentidos. Respirei fundo e continuei a andar, com dificuldade. Fui enrolada num cobertor térmico prateado e, em seguida, estiquei a mão para pegar minha medalha. Muita gente chorava e eu, não sei por quê, achei que tinha que me manter firme. Cheguei a bater os dentes de tanto frio e dor que sentia. Nesse momento, o que eu mais queria era encontrar alguém conhecido pelo caminho. Mas era impossível.
Já fora do Central Park, andei mais umas 30 quadras até encontrar alguns amigos. Dei de cara com o Wanderlei e lembro-me de fazer um breve comentário de que estava me sentindo mais leve. Era como se tivesse tirado um peso das minhas costas. Quando comecei a ouvir as pessoas do grupo, vi que todas, assim como eu, tinham uma história. E a mesma sensação de que a missão havia sido cumprida.
Peguei um táxi e, assim que cheguei ao hotel, liguei para minha família. Depois, fiquei mais de uma hora deitada na banheira, tentando relaxar. Só após tudo isso é que tive consciência do que tinha acontecido e a partir de então não consegui mais me manter firme como no final da corrida, perdi o controle e, longe de todos, comecei a chorar. Mas ainda tive forças para marcar meu próximo compromisso: 5 de abril de 1998, Maratona de Paris.’
Este texto foi publicado na edição de dezembro de 1997 da revista Boa Forma, da Editora Abril. Depois disso, outras maratonas vieram. Cumpri meu comprisso no ano seguinte em Paris, batendo meu recorde pessoal na distância (3h37min). Às vezes bate uma saudade e me pergunto se seria capaz de descrever novamente uma maratona com tanto entusiasmo. Definitivamente, não. Depois dezenove anos, de muitos quilômetros rodados, não tenho mais aquela inocência e euforia típicas do maratonista principiante.
A emoção da minha primeira maratona ficou estampada em quatro páginas de uma revista, para quem quisesse ver. As outras cinco, tenho todas na memória, quilômetro por quilômetro, milha por milha. Hoje eu me dedico a escrever a história de outras pessoas. Ganhei experiência de vida e claro que um certo conhecimento em corrida, até em virtude da minha profissão. Aprendi a vencer, a competir, a ajudar a quem precisa, a saber dosar, a respeitar meu corpo e principalmente a aceitar os resultados desfavoráveis. Afinal, assim é a vida. E novamente me vem na lembrança o mesmo pensamento da Primeira Avenida: “Aquele era o meu momento”. Mas com certeza outros virão.
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