Competindo após ter COVID-19

Foto crédito: Marcelo Assunção – Rio de Janeiro

Chegada!

Em 24 de maio, corri 10km no meu terraço e comemorei muito, como talvez jamais havia comemorado na minha longa carreira como corredor. Era a chegada de uma competição virtual, mas com um significado super especial: duas semanas antes, eu ainda lutava contra a COVID-19. Aquela chegada era um desabafo, havia superado o perigo. Era um momento feliz em um tempo triste: havia vencido a doença que mais mata pessoas no mundo nesse ano de 2020, mas poucos poderiam comemorar como eu.

Quem sou eu

Sou Marcelo Assunção, corredor veterano, professor de 54 anos. Corro desde 1980, e embora não seja fissurado em competir, nesses quase 40 anos como corredor já deu tempo somar pouco mais de 300 competições de várias distâncias.

Assim como para boa parte dos corredores, a atual pandemia de COVID-19 me afetou bastante. Após tomar consciência do perigo a que a humanidade está sujeita, parei de correr na rua. Meu Rio de Janeiro é um dos epicentros da pandemia no Brasil, e a cidade já tinha centenas de mortos. Não poderia contribuir com os negacionistas do isolamento social, não poderia ser um dos que correm na rua encorajando os demais a fazer o mesmo, e também não poderia ser um mau exemplo para meus alunos e suas famílias. Era a hora de ficar em casa.

Comecei então a me adaptar a correr sem sair de casa, usando o terraço do prédio como único percurso de treinamento. Meu síndico, profissional de atividade física e também esportista, montou um percurso lá em cima, e assim o condomínio consegue se manter ativo e com um pouco mais de saúde mental. Consegui organizar um treinamento mínimo com pequenas corridas de 5km a 7km, depois de permitir por algumas semanas que meus ligamentos e tendões se adaptassem lentamente às centenas de mudanças de direção que esse percurso exige.

Depois de participar de competições virtuais gratuitas de 5km, vi na 2ª Corre Em Casa a oportunidade de um desafio maior: seria divertido tentar fazer a prova de 10km num terraço com 480 mudanças de direção. Pagaria inscrição, participaria da largada remota e receberia uma camiseta e uma medalha pelo feito. Em abril, me inscrevi para a prova, que seria em 24 de maio.

Voltava a ter uma prova-alvo! Meu treinamento passava a ter um foco. O que poderia dar errado? Mal sabia eu…

Doente isolado

Em 20 de abril, precisei comparecer ao colégio em que trabalho para resolver um entrave burocrático. Mesmo tendo colocado a garotada e os professores no trabalho remoto desde o início da quarentena, meu colégio tem características especiais e precisa se manter com razoável quantidade de pessoas em atividade presencial. Planejava entrar, pegar um documento e sair. Mas precisei ficar mais de 40 minutos lá dentro, até que o responsável pelas chaves abrisse a sala, que felizmente estava isolada, como todas as salas não essenciais. Pareceu ser tempo suficiente para me contaminar, pois não encontrei outra fonte possível de contato com vírus naqueles dias. Havia mantido um isolamento bastante adequado! 12 dias depois, em 1º de maio, após um curto treino no terraço que pouco me cansou, percebi ao longo da tarde que não me recuperava do treino.

Estava muito cansado, o que era bastante estranho. À noite, já sentia febre. Começava uma operação de guerra na família!

Partimos da ideia de que eu poderia estar com COVID-19, e passei a me isolar de todos, evitando ao máximo possível sair do quarto. O apoio da família foi fundamental, especialmente por morar com um filho estudante de Medicina que me monitorava com apoio remoto do irmão, já médico formado e que já havia passado pela COVID-19. Infelizmente, ele foi infectado pelo contato diário comigo, embora tenha desenvolvido poucos e curtos sintomas.

Foram 10 dias com dor no corpo, mal estar, enjôo e perda de apetite. A febre era uma constante, precisava ser combatida para evitar riscos maiores. Tomei só antitérmico, complementos de vitaminas e minerais e muitos sucos e água. Meu filho médico recomendou “hidratação agressiva”, que passou a ser minha maior preocupação, ao lado do constante monitoramento do nível do oxigênio no sangue. Como tenho asma, a possibilidade do vírus atacar o meu pulmão aumentaria muito o meu risco de morte. O oxímetro de dedo era meu companheiro permanente. Minha esposa conseguiu não ser infectada, mesmo garantindo toda a estrutura que eu necessitava, porque manteve distância de mim todo o tempo. Minha família foi toda maravilhosa, nenhum agradecimento seria suficiente para ela.

Não posso me queixar do que sofri durante a doença. Boa parte dos infectados tem sintomas mais sérios do que os eu vivi. Após o fim dos 10 dias de sintomas,  estava praticamente normal. Com 12 dias, já caminhava sem dificuldades. Um exame positivo para anticorpos, nos dias seguintes, mostraria que as suspeitas eram corretas: sim, eu tive a COVID-19 e estava curado.

Mas e a competição? Faltava uma semana! Conseguiria correr?

Correndo após a COVID-19

Após o fim do isolamento, 2 semanas depois dos sintomas, já poderia experimentar meu corpo: uma pequena, lenta e cuidadosa corrida de 2km foi bem aceita. O corpo, já livre da infecção, reagia normalmente. Ao longo da semana que faltava para os 10km, fui aumentando as atividades. Um segundo treino de 3km, um outro de 4km, mais um de 5km. Já estava bem. Vamos ao desafio!

No dia da prova, uma agradável chuva baixou a temperatura do Rio. O problema passava a ser o piso. Não se faz piso antiderrapante para corredores, e sim para quem caminha nele. As curvas precisavam ser feitas com mais cuidado. Uma garrafa cheia seria meu posto d’água, uma playlist no celular seria minha companhia. Corri, me diverti e cantei um pouco ao longo de longos 1h18min – a mais lenta das minhas competições de 10km… E daí que estava lento? Estava vivo! Quantos perderam a oportunidade de dizer o mesmo por causa dessa pandemia? A chegada foi emocionante, ao mesmo tempo feliz e triste. Venci minha luta pessoal, mas o verdadeiro desafio está longe de ser superado.

COVID-19 e o que aprendemos

Precisaremos repensar nosso mundo, o quanto antes. Esse vírus que nos assola não tem personalidade, não tem objetivos, apenas se reproduz em nós. Ele não pensa, não sente. Como todo vírus, sequer pode se dizer com certeza se ele chega a ser um ser vivo ou morto. Um morto-vivo seria a forma mais adequada para nomeá-lo. Mas nós, humanos, vivemos, sentimos, temos objetivos e principalmente, pensamos. Temos pela frente enormes e necessárias reflexões a fazer sobre nossas corridas, nossas competições e nossa sociedade. Como viver sem aglomerações, sem contato? Como serão as corridas de rua a partir de agora? Estaremos confortáveis em nos apertarmos aos milhares para corrermos juntos novamente? E como poderemos nos divertir, estudar e trabalhar em grupo de novo? Já pararam para imaginar o novo mundo que poderemos ter que criar?

Ficou enfim claro que nossa saúde não depende apenas da gente mesmo. Se você vai ser saudável ou não, isso dependerá de outras pessoas, que podem nos passar doenças. E eles também dependem da nossa saúde para serem saudáveis. Precisamos defender a saúde do próximo, se queremos ser saudáveis, mas precisamos defender também a saúde de pessoas que muitas vezes estão no outro lado do planeta! E precisamos do SUS: somente um sistema público de saúde, universalizado para todos, pode nos salvar em grandes emergências como essa. Não podemos apenas torcer para que não haja pandemias. Elas quase não acontecem, mas não importa. Precisamos estar prontos para quando o inimigo invisível aparece. Temos recursos, sabemos o que fazer. Só precisamos aprender que a saúde é a única prioridade universal da humanidade. 

Essa é minha pequena história. Adoeci, dei a volta por cima e voltei a correr. Gostaria que fosse parecida com a história de todos os que enfrentaram a COVID-19, mas sei que não foi e não será. Ainda temos muito sofrimento pela frente, especialmente por conta dos que ainda não perceberam o perigo. Torço para que isso mude. Precisamos de todos. Não existe mais a minha saúde ou a sua saúde. A saúde, enfim, pode ser vista como um todo: temos que ver a saúde da humanidade inteira como uma coisa só. Que o sofrimento trazido pela epidemia sirva para o aprendizado que nos permita sair dela melhores do que entramos. 

Saúde, pessoal! Saúde para todos nós!

dbbwanderlei

Técnico fundador do Clube Corpore, em 1982, e do Pão de Açúcar Club, em 1992. Desde 2000 é comentarista e blogueiro.

1 comentário

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Wanderlei Oliveira

 

Iniciou no atletismo em 1965. Já percorreu o equivalente à três voltas ao redor do planeta Terra. Técnico fundador do Clube Corpore, em 1982, e do Pão de Açúcar Club, em 1992. Desde 2000 é comentarista e blogueiro.

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